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Pandora III

February 5, 2012

Quando  ser diferente não muda nada

“Em meio à desorientação e amargura daquela tarde, sentei em frente à máquina de escrever, a tela de qualidade contrastando com o teclado duro e desgastado. Pensei na área dos fundos da casa, um canteiro. A terra remexida de ontem, algumas mudas e uma quantidade enorme de sementes. Algumas telas, para que os pássaros não acabassem com tudo antes sequer do início. Um terreno de promessa que, em breve, floresceria e, aí então, alimentaria os pássaros e esquilos e outros animais que sempre aparecem em casa. Dentro de meses, haveria tantas flores quanto na parte da frente do quintal e, em poucos anos, várias árvores com frutas. Tudo o que eu plantava ali, florescia. Menos o que não era orgânico.

Soltei a respiração num suspiro pesado de cansaço e esgotamento. A despeito de todas a plantas e cores do lado de fora, a única que me importava agora era a feita por mãos humanas, símbolo sobrevivente de algum sentimento muito mais agoniante que agonizante. A Fera tinha sua rosa vermelha e uma princesa para salvá-la do abismo. Eu, que nunca fui princesa, tinha uma tulipa azul e uma garrafa de uísque para amortecer a minha queda. E ninguém para salvar.

Enchi o primeiro copo e comecei.

Inicialmente, a ideia era escrever uma poesia que servisse apenas para me livrar daquela mágoa. Transformar mais uma ferida em calo, cicatriz. E, quem sabe, em troféu de algum prêmio literário que me garantisse a aquisição de mais combustível para o vício. Mas a sensação que me veio foi de prosa, ao olhar para a tela e para o cursor, o maldito cursor a piscar eternamente, insaciável, como se a folha digital retribuísse meu olhar com uma expressão questionadora e jocosa. Abracei a ideia e comecei, pensando em escrever uma crônica, mas percebi que aquelas ideias só ganhariam alguma vida se eu as botasse num conto. Alterei períodos, removi algumas frases e compilei outras em conceitos, palavras-chave das quais faria uso. Comecei de novo. Uma pequena história sobre uma pessoa solitária que falava de como sua casa havia sido construída, e de como sobrava espaço sem a pessoa amada por ali.

Essa sempre foi a parte engraçada de escrever minhas narrativas. Meus processos sempre começam a partir de cenário muito pessoais, quase uma vontade de contar sobre minha vida – na maioria das vezes, reclamar dela. Mas, de repente, algo mudava o rumo das minhas prosas. E então, ao invés de simplesmente falar de forma figurativa sobre a minha frustração com os eventos da noite passada, do abandono, vi que a coisa que criava tinha muito da minha família. Escrevi sobre a tarefa árdua de construir e manter uma casa em ordem. E sobre a dificuldade em transformar uma casa em um lar. O texto era muito mais sobre os sacrifícios que vi meus pais fazerem ao longo dos anos, do que sobre minha dor. Senti que o desabafo era muito mais pelas dificuldades deles. O restante era só um amontoado de sentimentos melosos e uma frustração que, com um pouco de sorte, iria embora com o conteúdo da garrafa e um pouco de paciência.

Ainda assim, aquela história tinha uma mensagem. E a mensagem era minha. Ao ler o texto concluído, senti o constrangimento que sempre me abate ao me deparar com os meus sentimentos escancarados nas linhas. Sempre me pergunto se é assim com todas as pessoas que escrevem, mas evito saber. Pode ser mera influência dos textos de Bukowski, mas defendo a ideia de que, quanto menor o contato com outros autores, melhor. Como na maioria das vezes, o nome do texto só veio à minha cabeça depois da revisão. Foi difícil me decidir, não por estar em dúvida quanto ao melhor título, mas por demorar a pensar em algum. O torpor me consumia, sentia uma dor no peito que só podia descrever como um vazio grande, que parecia apertar todo o resto do que havia dentro de mim. E aquela história era só uma forma enviesada de me queixar. Foi daí que surgiu a ideia. Voltei ao topo do texto e digitei, em caixa alta: ‘Vago’.

Terminei de beber e desliguei o monitor, me deixando confortar pelo escuro do quarto.”

From → Prosa

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