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Tu

Tu, Notus tropicalis

abrindo cortante em meu rosto

um riso quente e feliz,

é de ti que eu gosto.

Tu desaba em mim feito o inverno,

feito uma chuva passada que

limpa cada poro e arrepia cada pelo.

Tua timidez ousada

me faz querer encarar o medo

de ser quem eu sou no meu profundo,

sem me importar se é cedo

pra dizer que não te querer é absurdo.

Estou sereno em me perder na sua retina

que da tua brisa eu não fujo nem que me falte ar.

Tu é vento minuano em qualquer clima,

do escaldante ao polar

eu quero só ser marujo

mesmo sem saber nadar.

 

31/07/2018, 22h51

Coisas de dissertação…

Autotomia
Diante do perigo, a holotúria se divide em duas
deixando-se semi-devorar pelo mundo,
salvando-se com a outra metade
Ela bifurca subitamente em naufrágio e resgate,
em despojo e promessa, no que foi e no que será
Bem no meio do seu corpo se abre um precipício
com duas bordas, uma estranha à outra
Numa das bordas, a morte, na outra, a vida
Aqui, o desespero, ali, a coragem
Se existe balança, nenhum prato pesa mais que o outro
Se justiça existe, ei-la aqui
Morrer não mais que o necessário
Renascer a partir do que se salvaguardou
Nós também sabemos nos dividir, é verdade
Mas apenas em corpo – e sussurro quebrado
Em corpo – e poesia
Aqui, a garganta, do outro lado, o riso
leve, logo abafado
Aqui o coração pesado, ali o “não morrer completamente”
três palavras que são como as três plumas de um vôo
O abismo não nos divide
O abismo nos cerca
(Wislawa Szymborska)
.
Vocês já perceberam que tudo o que é narrativa escrota super organizada que tem hoje na internet começou com polêmicas bizarras no Twitter há dez anos, quando começava a quebrar a onda de popularidade unânime dos shows de Stand-Up?
 
Iniciativas como o Escola Sem Partido existem há mais de 15 anos. Não é por acaso, com essas brigas no meio digital e a absoluta incapacidade e indisposição pra debate qualificado – produto da arquitetura alienada e alienante das redes, bem como, de seu uso ingênuo e acrítico decorrente da ausência de uma educação digital crítica – que tais movimentos ganharam força enorme a partir da virada da década.
 
Por outro lado, vejo e vi, em mim e em tanta gente querida, longos processos de mudança de posicionamento, de desconstrução. Boa parte das polêmicas ajudou a mudar visões de mundo limitadas. E, em meio a essa briga por lacração, é notável o quanto muita gente se politizou, e hoje percebe muita coisa ridícula que fazia. E que ajudou a construir esse rebosteio que vemos hoje.
 
Em 2007, eu achava o Rafinha Bastos engraçado. Em 2008, na faculdade, ouvi por acaso alguém debulhando o show dele que era bem famoso na época (o YouTube tem história…) e comentando cada detalhe de preconceito em cada piada. Não salvava nenhuma. Cada estranhamento desse operava uma mudança em mim (o Thiago deve lembrar bem da minha incapacidade de entender o quão falacioso era o discurso da meritocracia), e passei a figurar entre os que problematizavam as coisas. Só que eu demorei muito tempo pra perceber que, do outro lado da tela, tem alguém com uma trajetória diferente da minha. Tem gente de verdade que existe pra além do que suas postagens expressam. Cuidado de discutir sem escrachar demorou mais. E mesmo com uma postura pedagógica a coisa é bem mais difícil. E sempre dá vontade de ridicularizar. Tem memes que não tem como deixar passar – o que é um problema, se não estivermos num paradigma que compreende as ambiguidades e o caráter político do meio digital. Porque infantiliza as discussões e, numa cultura altamente individualizada, pode ser suficiente pra afastar alguém de uma experiência politizadora.
 
Na época em que o Danilo Gentili fez seus combos de “””piadas””” racistas, parecia só um idiota racista. Parecia que quem defendia ele no Twitter era só gente idiota racista ou que não tinha entendido nada por ser ignorante/burra. Mas era uma disputa real, por espaços. Os símbolos validam e ajudam a construir conjunturas materiais, mas nunca existem sem materialidade. E, enquanto a gente batia boca até cansar – e ridicularizava essa galera com altas doses de preconceito de classe, diga-se de passagem – teve gente que construiu capital político em cima disso.
 
Não vejo como poderia ter sido diferente. Qualquer experiência só ocorre dentro de uma conjuntura histórica, e nem eu nem meus colegas teríamos condições de compreender a alta complexidade daquele quadro. Esse processo todo é, afinal, contraditório, dialético. Mas a conjuntura agora é bem desanimadora, e as narrativas estão bem mais estabilizadas e com menos espaço para a divergência como em 2010. E pouca gente tem a oportunidade de ter as experiências transformadoras que eu e a maioria das pessoas que me rodeiam tivemos. Com crescente virtualização e precarização da vida como um todo, isso parece cada vez mais distante. Ao mesmo tempo, muita gente de 15 anos hoje contesta situações que eu naturalizava aos 20. Apreende e usa conceitos que eu não conhecia, e muito disso veio dessas polêmicas na internet, que a escola tradicional, com a higienização de assuntos que vem com o modelo conteudista, raramente coloca em pauta. As indagações feitas a docentes cresceram com o uso das redes digitais. Não é em si uma novidade, mas fica mais fácil questionar verdades estabelecidas e estagnadas. Se, por um lado, isso traz o risco da validação de qualquer posição imbecil, também exige algo fundamental a qualquer proposta de ensino transformador: o reconhecimento dos estudantes como sujeitos do processo educativo. Se eu não acolher pautas e experiências estudantis no processo pedagógico, estarei fugindo de questões fundamentais. E, se eu não aproveitar isso para criar espaço para mais perguntas, a molecada vai achar respostas em outro lugar. Muitas delas equivocadas.
 
Com isso em vista, me parece fundamental entender as interconexões entre espaços de vivência como escola e internet, e ocupar esses espaços como agentes desestabilizadores das certezas. As incertezas transformam. Então não dá simplesmente pra olhar para o quadro e imaginar que tudo é abismo. O mundo está sempre acabando pra quem está olhando pra ele sem saber o que virá.
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16 Jun 2018
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Insone

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Ossos, lassos nós

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Vontade E O Que Faria Passar

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Retrato do apego a planos esfacelados, olhos sobre lembrança

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Lamento sobre um grilo em queda livre

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Primeira fuga

Sempre lembrarei com carinho

De como as colinas e os prédios chiques

Nos acolheram, escondidos em público

Deixando só a chuva e o sol entrarem

Eu não disse, mas ali havia amor

Eu não disse, mas agradeci por lutar por nós

Obrigado.

 

17.09.17, 01h01

Lucinda e a estrela

Pela marca que nos deixa
A ausência de som que emana das estrelas
Pela falta que nos faz
A nossa própria luz a nos orientar
Doido corpo que se move
É a solidão nos bares que a gente frequenta
Pela mágica do dia
Que independeria da gente pensar
(Oswaldo Montenegro)

 

Lucinda era apaixonada por estrelas. Nunca sonhou, porém, em ser astronauta. A aura de desbravamento e conquista em torno da profissão a incomodava. O que queria mesmo era encontrar um lugar no mundo onde pudesse ter, de certa forma, um diálogo íntimo. Observava o céu noturno em busca de novidades, de diferenças. E nunca se cansava, pois ele nunca parecia ser o mesmo.

Pensava frequentemente em como a luz percorria o espaço tal qual ela própria, através de encontros e desencontros, e em como apenas a distância permitia perceber tal semelhança. Aos quarenta e três anos descobriu um lugar onde podia receber as luzes mais fugidias: uma colina adjacente ao campus onde havia estudado duas décadas antes. Mil setecentos e dois reais e noventa centavos depois – seu primeiro telescópio – iniciou uma rotina que duraria a vida: montava o equipamento todas as quintas-feiras naquele descampado.

Mal sabia ela que, no mesmo instante, o tempo pregava outra peça: a luz de uma grande, distante e há muito velha estrela cruzava, naquele fatídico dia, o planeta GJ-436. E, pontual como Lucinda, chegou à terra trinta anos depois, revelando-se à observadora de estrelas. O evento foi a maior alegria e ironia na vida afortunada da mulher: devidamente notificadas da descoberta, as autoridades científicas tardaram a reconhecê-la publicamente. Quando o anúncio oficial ocorreu, batizando a estrela de 5-T4R, Lucinda já era finada.

A verdadeira artimanha de Cronos foi outra, contudo: Lucinda descobrira 5-T4R sem saber que ambas buscaram encontros impossíveis a vida toda – uma lançando os olhos para os astros, a outra, lançando seus raios para o cosmos.

Ambas morreram felizes com o encontro, uma aos setenta e três e a outra aos dois bilhões e meio de anos terrestres, a primeira numa parada cardiorrespiratória e a segunda numa supernova.

Nenhum cientista percebeu.

 

06.10.2017, 21h27

Sístole

Sinto sua falta – ou pressinto.

O que mais dói é não doer

o dilaceramento

É me saber em pedaços

quando me vejo inteiro

entregue

a tudo o que me quiser levar

Não é vivacidade saboreada

é mero desejo de morte,

de dar tudo e nascer outro

e me fazer teatro

por saber o que me aguarda

em mim. Aquilo

que você um dia quis curar

um dia quis acompanhar

Não mais.

Teus olhos de gato

somem na minha escuridão no peito

mas lembro de como me olhavam de perto.

 

16.09.17, 11h58