Tu, Notus tropicalis
abrindo cortante em meu rosto
um riso quente e feliz,
é de ti que eu gosto.
Tu desaba em mim feito o inverno,
feito uma chuva passada que
limpa cada poro e arrepia cada pelo.
Tua timidez ousada
me faz querer encarar o medo
de ser quem eu sou no meu profundo,
sem me importar se é cedo
pra dizer que não te querer é absurdo.
Estou sereno em me perder na sua retina
que da tua brisa eu não fujo nem que me falte ar.
Tu é vento minuano em qualquer clima,
do escaldante ao polar
eu quero só ser marujo
mesmo sem saber nadar.
31/07/2018, 22h51
Autotomia
Diante do perigo, a holotúria se divide em duas
deixando-se semi-devorar pelo mundo,
salvando-se com a outra metade
Ela bifurca subitamente em naufrágio e resgate,
em despojo e promessa, no que foi e no que será
Bem no meio do seu corpo se abre um precipício
com duas bordas, uma estranha à outra
Numa das bordas, a morte, na outra, a vida
Aqui, o desespero, ali, a coragem
Se existe balança, nenhum prato pesa mais que o outro
Se justiça existe, ei-la aqui
Morrer não mais que o necessário
Renascer a partir do que se salvaguardou
Nós também sabemos nos dividir, é verdade
Mas apenas em corpo – e sussurro quebrado
Em corpo – e poesia
Aqui, a garganta, do outro lado, o riso
leve, logo abafado
Aqui o coração pesado, ali o “não morrer completamente”
três palavras que são como as três plumas de um vôo
O abismo não nos divide
O abismo nos cerca
(Wislawa Szymborska)
Sempre lembrarei com carinho
De como as colinas e os prédios chiques
Nos acolheram, escondidos em público
Deixando só a chuva e o sol entrarem
Eu não disse, mas ali havia amor
Eu não disse, mas agradeci por lutar por nós
Obrigado.
17.09.17, 01h01
Pela marca que nos deixa
A ausência de som que emana das estrelas
Pela falta que nos faz
A nossa própria luz a nos orientar
Doido corpo que se move
É a solidão nos bares que a gente frequenta
Pela mágica do dia
Que independeria da gente pensar
(Oswaldo Montenegro)
Lucinda era apaixonada por estrelas. Nunca sonhou, porém, em ser astronauta. A aura de desbravamento e conquista em torno da profissão a incomodava. O que queria mesmo era encontrar um lugar no mundo onde pudesse ter, de certa forma, um diálogo íntimo. Observava o céu noturno em busca de novidades, de diferenças. E nunca se cansava, pois ele nunca parecia ser o mesmo.
Pensava frequentemente em como a luz percorria o espaço tal qual ela própria, através de encontros e desencontros, e em como apenas a distância permitia perceber tal semelhança. Aos quarenta e três anos descobriu um lugar onde podia receber as luzes mais fugidias: uma colina adjacente ao campus onde havia estudado duas décadas antes. Mil setecentos e dois reais e noventa centavos depois – seu primeiro telescópio – iniciou uma rotina que duraria a vida: montava o equipamento todas as quintas-feiras naquele descampado.
Mal sabia ela que, no mesmo instante, o tempo pregava outra peça: a luz de uma grande, distante e há muito velha estrela cruzava, naquele fatídico dia, o planeta GJ-436. E, pontual como Lucinda, chegou à terra trinta anos depois, revelando-se à observadora de estrelas. O evento foi a maior alegria e ironia na vida afortunada da mulher: devidamente notificadas da descoberta, as autoridades científicas tardaram a reconhecê-la publicamente. Quando o anúncio oficial ocorreu, batizando a estrela de 5-T4R, Lucinda já era finada.
A verdadeira artimanha de Cronos foi outra, contudo: Lucinda descobrira 5-T4R sem saber que ambas buscaram encontros impossíveis a vida toda – uma lançando os olhos para os astros, a outra, lançando seus raios para o cosmos.
Ambas morreram felizes com o encontro, uma aos setenta e três e a outra aos dois bilhões e meio de anos terrestres, a primeira numa parada cardiorrespiratória e a segunda numa supernova.
Nenhum cientista percebeu.
06.10.2017, 21h27
Sinto sua falta – ou pressinto.
O que mais dói é não doer
o dilaceramento
É me saber em pedaços
quando me vejo inteiro
entregue
a tudo o que me quiser levar
Não é vivacidade saboreada
é mero desejo de morte,
de dar tudo e nascer outro
e me fazer teatro
por saber o que me aguarda
em mim. Aquilo
que você um dia quis curar
um dia quis acompanhar
Não mais.
Teus olhos de gato
somem na minha escuridão no peito
mas lembro de como me olhavam de perto.
16.09.17, 11h58